domingo, 23 de dezembro de 2007

O Bem e o Mal

Luciano Villanova*

Preparei o texto abaixo para divulgar, como mensagem de final de ano,alguns conceitos importantes da Tradição Taoísta. Procurei ser o mais claro e sucinto possível. Porém, tenho consciência, que a parte inicial do texto, principalmente numa primeira leitura, será de difícil entendimento. No entanto, acredito que vale o investimento de gastar alguns minutos numa leitura atenta. Escolhi o tema sobre a origem do bem e do mal em virtude do momento que a nossa civilização atravessa, onde o mal parece predominar muitas vezes sobre o bem. Espero que este conhecimento milenar possa ajudar-nos a entender melhor o momento que vivemos e a nossa parcela de culpa e/ou contribuição em relação ao todo. Um grande abraço,
Luciano.

Segundo a Tradição Taoísta, toda a Existência, do macrocosmo ao microcosmo, dos seres humanos a qualquer outra espécie de seres, ou de coisas, todos nascem de uma mesma fonte única chamada de Absoluto ou "Dào". Por este motivo, antes de explicarmos a origem do bem e do mal, precisamos compreender o significado do termo Absoluto, ou seja, precisamos compreender o que o Taoísmo chama de "Dào".
O ideograma "Dào" significa em Chinês "Caminho" ou "Via". Um caminho especial, pois tanto numa análise mais profunda do ideograma chinês "Dào" como através dos próprios textos taoístas, podemos entender que o "Caminho" só existe quando existe um caminhante e quando existe também um ato de caminhar, simultâneos e inseparáveis. Sendo o maior caminho o próprio Universo, o maior caminhar a própria Existência, e o maior caminhante Aquele que gera o Universo ao caminhar, podemos dizer que o "Dào" é ao mesmo tempo o Criador, a Criação e o Ato de Criar. Como Criador, o "Dào" é o Vazio. Não o vazio que coincide com o nada, mas o Vazio que abrange tudo o que existe, que abrange toda a Forma, e a Não-Forma também. Como Criação, o "Dào" é a Existência que existe no Vazio. Como Ato de Criar é a relação entre Vazio e Existência e a transformação que une os dois. Assim é que o "Dào", o Absoluto, é a totalidade que inclui o visível e o invisível, o ser e o não-ser juntos. Por isso, o "Dào" não se limita a nome, forma, sentido, imagem, ou qualquer outra coisa. No entanto, todas as coisas são partes do "Dào" e são formas do "Dào" se expressar.

O Absoluto indivisível, uma vez observado a partir da nossa mente, apresenta dois estados: o Estado Latente e o Estado Manifestado. O "Dào" em estado latente é como um Silêncio, ou Vazio, que permite a manifestação de todas as coisas. O "Dào" em estado manifestado é como o Som, ou a Existência, que se manifesta dentro do Silêncio e do Vazio. A "soma" do Estado Latente com o Estado Manifestado, é o próprio Absoluto, é o próprio "Dào".
No "Dào" em estado latente não há bem nem mal. Este estado é uma condição de total transparência, onde não há pensamento, não há imagem, não há linguagem, não há nenhuma expressão do ego, pois, de fato, não há ego.
No "Dào" em estado manifestado surgem o que chamamos de Dois Princípios e Três Poderes, os quais propiciam o aparecimento do bem e do mal no Universo. Os Dois Princípios correspondem ao Yang e ao Yin. Estes termos significam literalmente Luz (ou Luminosidade) e Sombra (ou Obscuridade). Eles não só estão presentes em todas as coisas, como são a própria base de tudo que existe (todos os seres, planetas, energias, pensamentos, etc.).

O princípio Yang compõe o lado firme, leve, tênue, expansivo, criativo, luminoso, espiritual, de tudo o que existe. Representa por analogia o céu, o sol, o dia, o verão, o pai, a luz, o quente, o alto, o homem, o espírito, a expansão, a continuidade, a firmeza, etc.

O princípio Yin compõe o lado flexível, pesado, denso, contraído, receptivo, obscuro, material, de tudo o que existe. Representa por analogia a terra, a lua, a noite, o inverno, a mãe, a sombra, o frio, o baixo, a mulher, o corpo, a contração, a descontinuidade, a flexibilidade, etc.

Apesar de numa primeira leitura podermos ser levados a entender que estes dois princípios representam características de opostos antagônicos, e que o bem se confundiria com o princípio Yang (luminoso, espiritual e contínuo) e o mal seria o próprio princípio Yin (obscuro, material, descontínuo), na verdade estes dois princípios não são opostos antagônicos, mas sim opostos complementares. São como dois lados de uma mesma moeda, como dois pólos de um mesmo imã, ou duas faces de um mesmo "Uni-Verso". Sendo assim, infinitamente e eternamente inseparáveis. Um dependendo do outro para existir, da mesma maneira que a sombra (yin) não existe sem a luz (yang) e a luz não é visível sem a sombra. Da mesma maneira que o alto só existe comparado ao baixo e o quente comparado ao frio e vice-versa. Como o dia e a noite, os dois princípios vivem também em eterna alternância, um sempre se seguindo ao outro. Então, os princípios Yang e Yin isoladamente não são o bem e o mal. Eles surgem no Universo simultaneamente e em perfeito equilíbrio, equilíbrio este que jamais seria perturbado se não fosse o aparecimento dos Três Poderes: o poder do Céu, o poder do Homem e o poder da Terra. O Céu e a Terra usam o seu poder sem intenção, com naturalidade. É exatamente o Homem, que por viver em um estado instável de consciência, acaba gerando a desarmonia entre os Dois Princípios, ao fazer uso do seu poder de forma egóica, intencional, julgadora e separatista.

Na história da humanidade são bem conhecidas as atuações dos seres humanos que às vezes modificam a natureza de uma forma nem sempre equilibrada e harmoniosa. Toda atuação humana, mesmo a nível apenas mental, consciente ou não, se reflete diretamente no equilíbrio entre os princípios Yang e Yin, entre o Céu e a Terra. Através de uma consciência que pode passear entre os estados mais elevados e os mais inferiores possíveis, a atuação do homem no Universo deixa de ter a inocência do Céu e da Terra e passa a ter intenção. Por isso, interfere na inter-relação dos Dois Princípios.

Sempre que o homem atuar harmonizando e equilibrando os dois opostos complementares, sempre que atuar na direção de manter ou propiciar o equilíbrio entre Yang e Yin, nós teremos o bem. Por outro lado, sempre que a atuação do homem não estiver de acordo com a harmonia e o equilíbrio original dos Dois Princípios, nós teremos o mal. Em termos práticos, toda vez que agirmos de forma intencional, toda vez que agirmos julgando e separando as manifestações, ou nos julgando separados do Universo, estaremos provocando o desequilíbrio entre os Dois Princípios, e estaremos assim fazendo um mal para todo o Universo, incluindo nós mesmos. O próprio fato da consciência humana, no nível de mente, enxergar o Universo de forma fragmentada, já é em um nível mais sutil um mal intrínseco.

Finalmente, o bem é a Grande Harmonia que depende do nível de consciência com o qual vemos o Universo e a partir do qual agimos. Sua busca não é uma utopia inatingível ou somente alcançável após abandonarmos o mundo manifestado. Essa perfeita harmonia pode ser atingida por uma pessoa viva, pois o próprio Estado Latente onde ela existe transpassa toda a "realidade" do Estado Manifestado. Para isso, basta que cada ser atue buscando manter sua consciência no Estado Latente (estado original). Isto não é simples, nem fácil, pois há muito desaprendemos como agir apenas pela nossa verdadeira naturalidade – não dualista, não intencional, não julgadora – e muito parecida com o que tínhamos ao nascer.

Todo o trabalho da Tradição Taoísta está sempre focado para que os seres voltem a viver o que chamamos Ação Não-Intencional. Para que os seres retornem a sua naturalidade original, sem dividir o Universo. Esta naturalidade está no "Dào", no Céu, na Terra e está também, ainda que esquecida e adormecida, no Homem. É a natureza real e primordial de cada ser. Resgatando e vivendo este estado de consciência pura, não intencional, o homem encontrará a harmonia em relação a sua própria espécie, em relação a todos os seres do Universo e em relação ao próprio Universo em si. E sempre que isto ocorrer teremos o Grande Equilíbrio, o Grande Bem.



*Luciano Villanova é sacerdote taoísta
 


 

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